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setembro 27, 2011

Caros amigos, este blog migrou e se converteu numa coluna de cinema no blog do Instituto Moreira Salles. Eis aqui o link:

http://blogdoims.uol.com.br/jose-geraldo-couto-no-cinema/

Para quem não conhece, o site todo do IMS  é excelente, sobretudo nas áreas de literatura, fotografia e artes visuais. Merece ser visitado.

Na coluna de estreia, falo sobre a produção brasileira recente e alguns filmes que estão por vir, e também sobre o recente Cineport.

Abraços. Espero todo mundo lá.

Dois filmes à sombra

agosto 21, 2011

No nosso aviltado mercado exibidor, bons filmes brasileiros disputam espaço não só com os blockbusters americanos e nacionais (leia-se globais), mas também com os bons filmes “de autor” vindos dos quatro cantos do mundo.

Nesse contexto, a imprensa cumpre – ou deveria cumprir – um papel importante para não deixar que boas produções sumam ou passem despercebidas. Mas não foi o que aconteceu com dois dos longas mais interessantes lançados no país nos últimos tempos: Transeunte, de Eryk Rocha, e Ex-Isto, de Cao Guimarães. Eclipsados pelo destaque crítico dado a A árvore da vida e Melancolia, os dois virtualmente desapareceram.

Nossos jornais e revistas de grande circulação os trataram quase com desdém, tomando para si os valores e critérios do mercado. Como se pensassem: não são “produtos” para o grande público, então não precisam ser comentados. Uma pena.

Corpo a corpo com a cidade

Curiosamente, trata-se dos primeiros longas de ficção de diretores vindos do documentário. Em Transeunte, o jovem filho de Glauber Rocha parece se afastar do respiro épico dos filmes do pai (marcante em seus primeiros longas) para mergulhar no registro lírico, imergindo de maneira corajosa e comovente na exploração de uma vida singular, a de um homem solitário de meia-idade (Fernando Bezerra) que perambula pelas ruas do Rio de Janeiro. Rodado em preto e branco, com som direto e muita câmera na mão, o filme adere à epiderme do personagem, buscando seu sentido e sua poesia na interação do corpo desse indivíduo comum e ímpar com o corpo múltiplo da cidade. Como o próprio diretor costuma dizer, não é um filme sobre o personagem, mas sim com o personagem.

Um corpo a corpo ainda mais complexo de um homem com seu entorno é encenado por Cao Guimarães em Ex-Isto. O experiente desbravador dos limites do documentário enfrenta aqui o desafio de dialogar cinematograficamente com um livro inclassificável e irredutível, o “romance-ideia” Catatau, de Paulo Leminski. O barroco jorro verbal leminskiano parte de uma hipótese genial: e se René Descartes tivesse vindo ao Brasil na entourage de Mauricio de Nassau, na época da ocupação holandesa de Pernambuco? No filme, o extraordinário João Miguel assume o papel desse Descartes delirante e em crise num país em que tudo é exuberante, desmesurado e absurdo.

Adoecimento da lógica

Ao contrário do crítico literário (por sinal, meu amigo) que resenhou o filme na Folha de S. Paulo, penso que Cao Guimarães foi muito feliz ao encontrar ou suscitar imagens e sons (fala, ruídos, música) que traduzem audiovisualmente esse “adoecimento da lógica cartesiana” em terras tropicais.

São, em suma, dois filmes belíssimos que mereciam um tratamento melhor por parte da nossa imprensa. Eu adoraria saber, por exemplo, o que um Inácio Araujo tem a dizer sobre Transeunte, ou o que um Alcino Leite Neto escreveria sobre Ex-Isto.

Quem ainda tiver oportunidade de ver, não deve perder. Aqui vão, para não me deixar mentir, os trailers dos dois filmes. Divirtam-se.

O nazismo aqui e agora

agosto 5, 2011

Chegou finalmente ao Brasil, em DVD da Videofilmes, um dos documentários mais extraordinários já realizados, o monumental A tristeza e a piedade – Crônica de uma cidade francesa sob a ocupação (1969), de Marcel Ophuls.

O momento não poderia ser mais oportuno, agora que manifestações de fascismo e intolerância afloram em toda parte, de São Paulo à Noruega.

Pois o que o filme de Marcel Ophuls nos mostra – e é isso que o torna mais assustador – é que o nazi-fascismo não é meramente uma questão de poder militar ou de uma liderança política ensandecida, como o cinema hollywoodiano nos descreve há sete décadas, mas um fermento cotidiano, uma brutalidade latente que se alimenta das mais prosaicas vaidades e mesquinharias humanas.

Para construir seu rico painel do período da ocupação da França pelos nazistas, Ophuls concentra seu foco na cidade de Clermont-Ferrand e costura de modo sutil e engenhoso uma infinidade de materiais: cinejornais de época (franceses, alemães, ingleses, americanos), fotos, recortes de jornal. Tudo isso é entremeado por depoimentos dos indivíduos mais diversos que viveram aquele momento, de partisans da Resistência a oficiais nazistas, de espiões ingleses a colaboracionistas, de judeus deportados para campos de concentração a comerciantes que se mantiveram “neutros”.

Antissemitismo e aversão aos ingleses

O resultado é eletrizante, e causou furor na época de lançamento do filme, por contradizer a imagem que se constriu na França do pós-guerra, de um país que resistira em bloco, de maneira ativa ou passiva, à presença alemã. O que Le chagrin et la pitié mostra, ao contrário, é que a ocupação nazista foi facilitada por grande parte (se não a maioria) dos franceses, movidos por sentimentos como o antissemitismo, o medo do comunismo e a aversão aos ingleses, quando não por interesses materiais mais comezinhos, como vender seus produtos aos invasores alemães ou livrar-se de competidores incômodos no mercado comercial ou de trabalho.

Uma das estratégias críticas mais eficazes do documentário é confrontar a imagem que certos personagens constroem de si mesmos, na tentativa apagar ou atenuar sua atitude de colaboração ou conivência, com documentos de época que contradizem essa imagem: por exemplo, um anúncio de jornal em que um comerciante declarava não ser judeu. Ou então são os próprios depoimentos dos personagens que se contradizem uns aos outros. Em certo momento, o genro do primeiro-ministro fantoche francês Pierre Laval diz que este era um homem cordato e não-repressivo, logo depois que um oficial do exército informa que Laval mandou crianças francesas para campos de concentração alemães.

Nem monstros nem santos

A ironia, por ser sutil, tem sua contundência potencializada. (Michael Moore devia ver esse filme o quanto antes.) Os depoimentos falam por si. Entre os mais iluminadores estão os de dois aristocratas franceses, um que aderiu ao nazismo, chegando a lutar na Waffen SS no front oriental, e o outro que se engajou na Resistência. Ophuls deixa-os à vontade para contarem sua história e explanarem suas ideias e sentimentos. Sentimo-nos próximos dos dois. O colaboracionista não é um monstro, o resistente não é um santo. São humanos, como nós, e é isso que inquieta e incomoda. Estamos longe, aqui, da fantasia maniqueísta e apaziguadora de Hollywood.

A dolorosa sinfonia de Max Ophuls termina de modo pungente: logo depois da guerra, num inglês carregado de sotaque, Maurice Chevalier fala ao público norte-americano para explicar sua dúbia atitude durante a ocupação nazista da França. É quase um pedido de desculpas e de emprego. Seria cômico se não fosse trágico.

Aqui vai o trailer americano (um tanto bombástico e enganoso) dessa obra-prima.

A economia e o excesso – dois filmes brasileiros

julho 15, 2011

Voltei ontem de Paulínia, antes da premiação do festival.

Vejo que Claudio Assis ganhou quase tudo com o seu Febre do rato, inclusive o prêmio da crítica.

Correndo o risco de trafegar na contramão dos meus colegas, confesso que o resultado me desagradou e vou explicar por quê.

Começo esclarecendo que cheguei tarde a Paulínia e não vi um dos fortes competidores do festival, O Palhaço, do Selton Mello, do qual ouvi só boas referências.

Mas o filme que mais me encantou, disparado, foi Trabalhar cansa, dos estreantes em longa Marco Dutra e Juliana Rojas.

Drama social, cinema fantástico

É uma mistura improvável e desconcertante de drama social com cinema fantástico. A situação de partida é das mais banais: um executivo, Otávio (Marat Descartes, de Os inquilinos), perde o emprego; sua mulher, Helena (Helena Albergaria), tenta montar um minimercado. Há uma inversão de rumos, portanto: a mulher vai para a rua, para o mundo do trabalho, ao mesmo tempo em que o homem é expelido dele e fica em casa se deprimindo.

O homem fica sem lugar, a mulher tenta construir o seu. As relações de trabalho permeiam tudo, seja na conflituosa interação de Helena com os empregados do minimercado e com a doméstica que é obrigada a contaratar para cuidar da casa e da filha, seja na saga inglória de Otávio pelas entrevistas de emprego e agências de colocação profissional.

Mas há outro eixo que organiza e anima o filme, que é o da construção e ocupação do espaço: a doméstica que “invade” o apartamento, as reformas no prédio do minimercado – este último funcionando quase como um personagem vivo e autônomo.

É em torno desses dois vetores, o trabalho e o espaço (dito de outra maneira: as relações dos indivíduos entre si e com o ambiente), que o filme se desenvolve, com uma economia narrativa admirável.

Brecht e Polanski

Poucos filmes brasileiros até hoje trabalharam com tanta segurança e eficácia as elipses, os silêncios, o “fora do quadro”. Mais raros ainda são os que conseguem trafegar pelos vários gêneros sem se prender a suas regras e sem perder seu foco e sua pegada.

O que incomodou uma parte da crítica (mais do que o público, cuja acolhida foi calorosa) foi justamente o que o filme tem de melhor, que é o seu caráter inclassificável. É drama social, mas é também suspense, terror, alegoria política. Tudo ao mesmo tempo.

No debate do filme em Paulínia, os jovens diretores falaram de sua dívida com o cinema clássico (de Ford e Hitchcock a Walter Hugo Khoury) e com Brecht, em especial com a leitura de Brecht pela companhia do Latão, grupo teatral paulista que forneceu atores e ideias para o filme. Mas é evidente também o diálogo com o cinema de atmosfera de um David Lynch, de um Kubrick e mesmo do Polanski de O inquilino.

Mas o fato é que todas essas referências, toda essa bagagem literária e audiovisual, não pesa, não grita, não prejudica a originalidade sem ostentação da dupla de cineastas.

É, sem exagero, um filme para ficar na história do nosso cinema.

Cláudio Assis na encruzilhada

Bem, e o Cláudio Assis?

Que me perdoem os fãs incondicionais do diretor – que nos deu os admiráveis Amarelo manga e Baixio das bestas – mas eu tenho a impressão de que ele esgotou (espero que temporariamente) o que tinha a dizer e agora caiu na redundância, no maneirismo, virou grife.

Há no filme – rodado num mangífico preto e branco por Walter Carvalho – uma estilização extrema do universo que interessa ao diretor, o de uma espécie de jovem lumpesinato recifense, com seus pequenos traficantes, seus subempregados, seus bêbados, putas e travestis. Há um poeta marginal (o excelente Irandhyr Santos), que faz um jornalzinho artesanal chamado Febre do rato e funciona como um alter-ego do diretor, vociferando poemas verborrágicos e discursos obscenos contra as elites e os poderes estabelecidos.

Trepa-se, bebe-se cachaça e fuma-se maconha o tempo inteiro nessa espécie de comunidade alternativa.

Uma rebeldia ao mesmo tempo adolescente e envelhecida, ecoando na tela o discurso recorrente do cineasta, um discurso que se quer revolucionário, mas em geral não passa de malcriado.

O sórdido e o sublime

Que não me entendam mal. Cláudio Assis tem enorme talento e vigor, seu cinema encontra no sórdido momentos de sublime poesia. Mesmo em Febre do rato há passagens belíssimas e antológicas, como aquela em que, a pedido do poeta, sua amada levanta a saia e mija no rio, agachada na beirada de um bote ou jangada. Um momento digno de Bataille, de Henry Miller, de Pasolini. Mas essas epifanias se perdem no mais das vezes no fluxo de imagens e falas que parecem não ter outro sentido senão o de desejar épater.

Talvez eu esteja enganado, mas foi assim que vi Febre do rato. Ensurdecido pelos aplausos, aturdido pela badalação, dificilmente Claudio Assis vai parar para refletir sobre o seu trabalho. É uma pena.

A graça de Woody Allen

junho 28, 2011

A melhor definição de Woody Allen que eu li nos últimos tempos foi dada pelo amigo jornalista Márvio dos Anjos no Facebook: “Na categoria meio-médio-ligeiro, ele é campeão do mundo”.

Meia-noite em Paris é a comprovação disso. Resumindo drasticamente as coisas, no filme há um jovem casal americano em Paris; ele é escritor e tem uma visão romântica da criação artística; ela é patricinha e pragmática como o pai capitalista e só vê a arte como um verniz que não difere muito das roupas e jóias que consome.

Lá pelas tantas (meia-noite em Paris), o rapaz viaja fantasticamente aos anos 20, encontrando figuras carimbadas da vida parisiense da época: Hemingway, Fitzgerald, Picasso, Gertrud Stein…

Pílulas de conhecimento

Essa mudança de dimensão (temporal, no caso) não deixa de lembrar a passagem da tela de cinema para a “realidade” – e vice-versa – de A rosa púrpura do Cairo, outro sucesso de público do cineasta. Fechemos o parêntese.

O fato é que, para tornar o protagonista mais simpático aos olhos da plateia, Allen o contrapõe a um intelectual pedante (personagem recorrente em seus filmes), que lança mão de pílulas de conhecimento para se passar por culto.

Só que, reparando bem, isso não é muito diferente do que o próprio cineasta faz em seu filme. As noitadas secretas do protagonista no passado são pouco mais do que um encadeamento de clichês sobre os personagens históricos em questão: Zelda Fitzgerald sempre bêbada, Hemingway falando de boxe e coragem e indo caçar antílopes na África, Dali às voltas com imagens de rinocerontes etc.

A diferença é que, ao contrário do chato de galochas que fascina a noiva do protagonista com seu falatório pseudoculto, Woody Allen faz o seu número com graça e leveza. E insere entre os clichês algumas variações e piadas muito boas, como a do escritor do nosso tempo  sugerindo ao jovem Buñuel que faça um filme sobre um grupo de pessoas que não consegue sair de uma casa (o tema de Anjo Exterminador). O engraçado da história é a reação de Buñuel, que não entende o sentido daquilo e faz uma objeção que só os críticos mais obtusos fariam, décadas depois, a sua obra-prima: “Mas por que eles não saem simplesmente pela porta aberta?”

A cena me lembrou uma passagem análoga de Peggy Sue (o De volta para o futuro de Francis Coppola) em que Peggy (Katlhleen Turner), retornada à juventude, “sopra” a seu namorado roqueiro (Nicholas Cage) a letra e a música de She loves you, dos Beatles, como receita para o sucesso. Só que ele é um palerma tão completo que muda o refrão, de She loves you, yeah, yeah, yeah para um insosso She loves you, you, you. No cinema americano, mesmo no cinema “de autor”, nada se cria, tudo se recicla.

Velho encanto hollywoodiano

O que torna irresistível o encanto desses filmes agridoces do diretor, com seu mood “allegro non troppo”, não é a exibição superficial de cultura, nem a filosofia meio de auto-ajuda que se depreende deles (no caso deste: “o passado sempre nos parece dourado porque não somos capazes de ver a poesia que nos cerca no presente”, ou algo do tipo). O que torna Woody Allen campeão do mundo é a leveza, a elegância e a sem-cerimônia com que nos leva pela mão a um mundo de fantasia, de cores esmaecidas e aconchegantes, em que o cinza cede lugar ao sépia, ao som de Cole Porter e banjos de bandas dixieland. Assim qualquer época da história fica dourada.

Falta amadurecer esta ideia, mas desconfio que, ao fim de tantos desvios aparentes, Woody Allen retorna sempre ao seio materno de Hollywood e das fábulas contadas desde que o mundo é mundo, ao persistente mecanismo de identificação e projeção que nos lança por um par de horas no interior da tela, ligeiramente estupefatos, mas crédulos. É, em suma, um entertainer, um contador de histórias e um ilusionista.

Que esta sua arte superficial e ligeira – e até fajuta, se queiserem – siga nos embalando por muito tempo ainda.

Hitchcock, arte e indústria

junho 16, 2011

A maior retrospectiva da obra de Alfred Hitchcock já realizada no país está em cartaz nos CCBBs de São Paulo (até 24 de julho) e do Rio (até 14 de julho). São 54 longas-metragens, três curtas e 127 episódios da série televisiva Hitchcock presents.

Desnecessário falar sobre a importância de Hitchcock, o homem que transformou o suspense em linguagem e levou ao seu ponto máximo as possibilidades da narrativa cinematográfica clássica, com sua capacidade de manipular o olhar e a emoção do espectador.

Uma vasta bibliografia já se encarregou disso. Recomendo em especial três livros: o monumental Hitchcock/Truffaut (tradução de Rosa Freire d’Aguiar, Companhia das Letras), em que o mestre inglês fala exaustivamente de cada um de seus filmes ao admirador e discípulo francês; Hitchcock, publicado pela primeira vez por Eric Rohmer e Claude Chabrol em 1957, e absurdamente nunca traduzido no Brasil; e o introdutório Alfred Hitchcock, o mestre do medo (Brasiliense, esgotado), de Inácio Araujo.

O fracasso como erro

Chamo a atenção apenas para um aspecto que me parece central na figura do cineasta: ninguém conseguiu superar tão bem quanto ele a dicotomia que parece dilacerar o cinema desde seus primórdios, a saber, a dicotomia entre arte e indústria. Para Hitchcock, um filme seria tanto mais bem-sucedido artisticamente quanto mais êxito obtivesse na bilheteria. Para ele, a sentença não era arte x indústria, mas arte = indústria, o que, na boca de um outro cineasta (que dirá de um crítico) soaria como uma heresia mercenária.

Falando sobre o eventual fracasso de algum de seus filmes, Hitchcock nunca culpava a incompreensão da plateia, a tacanhez do sistema, os problemas de distribuição ou qualquer outra coisa do tipo. Via-o como um erro seu: um ator mal escolhido para ser o vilão ou o herói, uma revelação da trama feita na hora errada, um truque ótico deficiente. Ou uma avaliação errônea sua sobre a psique de seu público.

Sucesso e invenção

Por exemplo: considerava que A tortura do silêncio tinha fracassado (relativamente) na bilheteria porque a idéia católica do segredo do confessionário era pouco compreensível para um espectador majoritariamente protestante. Pouco importava para ele que o filme fosse, segundo boa parte da crítica (e me incluo nessa linha), uma obra-prima. O fato de o grande público não se interessar era um sinal de fraqueza, de falha, de insuficiência.

Se, por um lado, sua obra ajuda a solapar a desconfiança um tanto arrogante da crítica diante de tudo o que faz sucesso, ajuda também a jogar por terra a ideia de que, para atingir o público, é preciso abrir mão da ousadia e da invenção, repetindo fórmulas e formas já experimentadas (e transformadas em fôrmas). Poucos cineastas inventaram tanto, em termos de decupagem, enquadramento, movimentos de câmera. Poucos pensaram de maneira tão cinematográfica (vale dizer: tão distante do discurso literário e da impostação teatral).

Por tudo isso, e pelo puro prazer que seus filmes proporcionam, sempre vale a pena voltar a Hitchcock.

Aqui, uma colagem de suas breves aparições em seus filmes, uma marca registrada que era várias coisas ao mesmo tempo: blague, assinatura e pura vaidade.

E aqui, uma preciosa entrevista do mestre sobre a montagem (em inglês, com legendas em espanhol).

Recife frio

junho 10, 2011

Um dos melhores filmes brasileiros dos últimos tempos é um curta-metragem: Recife frio, de Kleber Mendonça Filho, que ganhou recentemente o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro em sua categoria.

Recife frio é a prova cabal de que engenho e arte são o principal “valor de produção” de um filme. Com baixo orçamento e alta imaginação, Kleber Mendonça parte de uma ideia engenhosa – a mudança radical do clima do Recife, possivelmente motivada pela queda de um meteorito – para construir uma obra de contundente crítica social e cultural e, ao mesmo tempo, de reflexão sobre a imagem e suas manipulações.

Sob a forma de uma falsa reportagem especial da televisão argentina, o filme dá rédea solta à especulação, virando do avesso a capital pernambucana e sua inserção no imaginário mundial. No processo, revela de um ângulo inusitado as fraturas sociais e arestas culturais, retirando-as do lugar de “paisagem natural” (e, no limite, invisível) em que se encontram. Kleber Mendonça distorce a cidade para mostrá-la melhor.

Tudo isso com um uso sagaz dos poucos recursos à disposição, com uma confiança profunda nas potencialidades da linguagem cinematográfica e na capacidade imaginativa do espectador. O melhor efeito especial, o filme nos mostra, ainda é a capacidade humana de fantasiar, fabular, inventar.

Faltou dizer que o curta é divertidíssimo, cheio de sacadas brilhantes, como a da transmutação do quarto da empregada (esse hediondo avatar da velha senzala) no cômodo mais disputado do apartamento à beira-mar.  Ou a do artesão ceramista que passa a moldar figurinhas agasalhadas diante da lareira, em vez dos tradicionais cangaceiros ou sertanejos montados em jegues.

Talvez não seja exagero dizer que Recife frio está para o cinema brasileiro atual como Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado, está para o cinema brasileiro do final do século passado. Ambos são falsos documentários que transcendem os limites do curta, abrem caminhos, iluminam toda uma cinematografia.

O filme está no youtube, dividido em duas partes. Aqui vão elas:

 

Música para ver, cinema para ouvir

maio 26, 2011

Um dos mais influentes músicos do século 20, Miles Davis, que estaria completando hoje 85 anos, tem mais a ver com o cinema do que geralmente se imagina.

O timbre inconfundível de seu trompete aparece em 48 longas-metragens, fora aqueles em que não foi creditado. Mas ele compôs relativamente pouco para cinema: levam a sua assinatura um punhado de documentários e apenas três longas de ficção: Ascensor para o cadafalso (1957), de Louis Malle, Siesta – Marcas de uma paixão (1987), de Mary Lambert, e Dingo (1991), de Rolf de Heer.

Desses, o mais importante, de longe, é o primeiro. O thriller de Louis Malle deve muito de sua elegância e densidade emocional ao cool jazz de Miles Davis. A trilha, repleta de improvisos do próprio trompetista, marcou época e influenciou boa parte da música dos policiais psicológicos/existenciais europeus e americanos feitos desde então.

Segue aqui um registro precioso: Miles Davis improvisando para a gravação da trilha sonora diante das imagens projetadas do filme. Poucas vezes houve uma comunhão tão perfeita entre música e cinema. O próprio Malle fala sobre isso ao final do vídeo.

Como curiosidade, vai também um trecho de Dingo em que Miles aparece como ator, no papel do trompetista Billy Cross, ídolo do jovem branquelo John “Dingo” Anderson (Colin Friels), que sai do interior da Austrália para tentar a sorte como músico nos clubes de jazz de Paris. Até onde eu sei, o filme não foi exibido comercialmente no Brasil (só em festivais) e ainda não está disponível em DVD.

O filme pode não ser grande coisa, mas a música… Ouça só:

E, só para completar a fatura, um trecho de Siesta, com Ellen Barkin, Isabella Rosselini e a música do homem:

Filmar o que não se vê

maio 16, 2011

Assim como o vento ou a eletricidade, que só se tornam “visíveis” pelo efeito que causam (o movimento das folhas, uma luz que se acende), também o espiritual, o sobrenatural, o “além”, só se dá a ver por sua ação sobre a matéria.

Vai daí que o cinema, arte da superfície das coisas visíveis, tem se servido desde suas origens de dois caminhos, basicamente, para mostrar o que não se pode ver: a) os efeitos especiais mais ou menos pirotécnicos (de Méliès a Spielberg); ou b) o que eu chamaria, em falta de definição melhor, de uma mise-en-scène do espanto, um modo de sugerir o sobrenatural pelo efeito que produz na emoção dos personagens.

Um exemplo acabado do primeiro tipo seria Poltergeist. Exemplo supremo do segundo seria Ordet – a palavra, de Dreyer, em que nos convencemos de um milagre sem que haja um único efeito especial.

Claro que é possível, e com frequência acontece, uma combinação entre essas duas vias.

Num cinema de condições modestas de produção, como o brasileiro, optar pela primeira via é uma temeridade. Corre-se o risco do canhestro e do ridículo. Com raras exceções,  só os filmes brasileiros para o público infantil se arriscam nessa linha. Realizar no Brasil um Poltergeist seria impensável.

Até um cineasta como Martin Scorsese quebrou a cara, quando filmou A última tentação de Cristo, ao concretizar certas imagens bíblicas, como a do leão e da labareda falando com Jesus no deserto. Nem sempre é possível tornal literal o que é literário.

Salto no escuro

Todo esse preâmbulo é para falar do novo filme de Jorge Durán, Não se pode viver sem amor.

Se o longa anterior do cineasta, Proibido proibir, atinha-se aos limites de um estrito (e um tanto declaratório) realismo, este representa um corajoso salto no escuro, ou quase. O filme lida com premonições, poderes telecinéticos e, possivelmente, ressurreição.

Em resumo, trata-se da história de um menino (Victor Navega Motta) que vai ao Rio de Janeiro em busca do pai (num movimento oposto ao do protagonista de Central do Brasil). Acompanha-o a moça (Simone Spoladore) que o criou como filho, uma ex-namorada do pai desaparecido. Flashbacks esparsos e meio confusos permitem ao espectador construir até certo ponto o passado desse pai misterioso – e da mãe, mais misteriosa ainda.

Outras duas histórias aparentemente alheias a essa se desenrolam em paralelo: a de um jovem advogado desempregado (Cauã Reymond) e sua amada, uma dançarina de boate (Fabiula Nascimento); e a de um professor universitário (Angelo Antonio) e seu pai taxista (Rogério Fróes).

O modo como essas três linhas narrativas vão se entrelaçar é o grande trunfo do bom roteiro de Durán e Dani Patarra, premiado em Gramado, assim como a atriz Simone Spoladore. Alguém falou da semelhança dessa estrutura “multi-plot” com a dos filmes de Iñarritu roteirizados por Guillermo Arriaga. Mas acho exagero: não há no filme de Durán a compulsão barroca por multiplicar os caprichos do acaso que encontramos nos filmes da dupla mexicana.

Truques e dramaturgia

Um dos méritos de Não se pode viver sem amor, para voltar ao tema do início deste texto, é o comedimento com que lança mão de efeitos especiais para expressar os poderes paranormais do menino protagonista. Consciente da modéstia de seus recursos, Durán equilibra de modo satisfatório os truques técnicos e a dramaturgia, raras vezes descambando para o canhestro.

O filme está longe de ser perfeito. Algumas cenas – sobretudo os flashbacks – poderiam ser mais bem cuidadas, em termos de enquadramento e iluminação. Certos personagens secundários (os amigos do advogado, por exemplo) poderiam ser menos “chapados”.

Mas o que sobressai no conjunto é a saudável audácia de um diretor veterano (que filmou tão pouco: só quatro longas) em adentrar um terreno novo e perigoso, em vez de seguir caminhos já batidos.

A seguir, o trailer do filme.

Existe um cinema cristão?

maio 4, 2011

A pergunta acima me veio à mente enquanto assistia a Homens e deuses, de Xavier Beauvois. Não me refiro, é claro, aos épicos bíblicos hollywoodianos, com seus imponentes Moisés, seus Cristos ensanguentados e seus atléticos Sansões. Nem à baixa exploração sentimental-comercial do “filão”, em filmes como os brasileiros Maria, a mãe do filho de Deus e Nossa Senhora de Caravaggio.

Penso, antes, nos dramas espirituais profundos e sublimes de Carl Dreyer (A paixão de Joana d’Arc, Ordet), de Robert Bresson (Diário de um pároco de aldeia, Pickpocket, Mouchette), de Maurice Pialat (Sob o sol de Satã), de Hitchcock (A tortura do silêncio).

É nessa vertente que se insere o belo filme de Beauvois. É essa linha que ele atualiza e problematiza. Sua situação dramática – um mosteiro trapista situado nas montanhas da Argélia dilacerada pela guerra civil – parece se organizar em torno de uma questão essencial: é possível ser cristão num mundo sem Deus, ou no qual o nome de Deus é evocado para justificar o ódio e a violência?

Ser cristão, evidentemente, não é apresentar-se como tal  (católico ou evangélico) da boca para fora, mas sim agir de acordo com ideais de renúncia e fraternidade supostamente ensinados pelo próprio Cristo. Por esse critério, nem o Papa (aliás, muito menos o Papa) é cristão. Mas os frades de Homens e deuses o são, ou tentam ser. São homens de carne e osso, portanto frágeis e contraditórios, mas têm como norte, como meta sabidamente inatingível, a integridade moral e espiritual.

Deus como horizonte

Com sua delicadeza sóbria, seu respeito profundo pelos personagens e sua busca, o filme me fez lembrar de um livrinho do escritor grego Nikos Kazantzakis (autor, entre outros, de Zorba, o grego e A última tentação de Cristo) chamado Ascese. Há no Brasil uma tradução excelente de José Paulo Paes. Pois bem: correndo o risco de uma simplificação grosseira, digo que a “ascese” do título consiste na construção paulatina de Deus pelo homem. Ou seja, Deus não existe a priori, é o homem que o constrói à medida que se eleva moral e espiritualmente, à medida que se desprende do que há de mesquinho e bestial em seu interior. Deus não é. Deus será. É um horizonte a ser buscado, ainda que saibamos que jamais será atingido.

Vale pensar também na canção Se eu quiser falar com Deus, de Gilberto Gil, cuja ideia é semelhante.

Assim como Deus é uma ideia para a qual se volta o desejo humano de elevação, talvez o cinema cristão – ou pelo menos aquele que me interessa – não exista enquanto veículo de uma doutrina pronta, mas como retrato de uma busca em andamento. Homens e deuses faz parte dessa busca.

Só mais uma palavra sobre o filme, cujo trailer segue aqui embaixo. Os atores que encarnam os monges estão todos admiráveis, exprimindo em poucos gestos, palavras e olhares toda uma gama complexa de sentimentos que vai da fé à hesitação e ao medo. Mas dois deles se destacam: o versátil Lambert Wilson, no papel do líder do grupo, frei Christian, e o veterano Michael Lonsdale (ator de Truffaut, Buñuel e Resnais), como o frei-médico Luc.