O afeto que se encerra

Não existe relação humana mais primordial, fundadora, do que a relação entre mãe e filho. Isso é evidente até para quem nunca leu uma única linha de Freud.

Dois filmes em cartaz, díspares em tudo o mais, exploram os descaminhos que se abrem ao indivíduo quando esse afeto primevo de algum modo se extravia. Estou falando do brasileiro Vips, do estreante Toniko Melo, e do francês Feliz que minha mãe esteja viva, que o veterano Claude Miller realizou em parceria com seu filho Nathan.

No filme francês, o garoto Thomas e seu irmãozinho Patrick são adotados por um casal estável de classe média depois que sua mãe, a jovem solteira e namoradora Julie Martino (Sophie Cattani) os abandona. Aos 20 anos, o desajustado e rebelde Thomas (Vincente Rottiers) sai em busca da mãe biológica e a encontra. Sobre o reencontro dos dois, cabe dizer apenas que é, no mínimo, explosivo.

Em Vips, baseado na história real do falsário e mitômano Marcelo Nascimento da Rocha, um rapaz de classe média baixa (Wagner Moura), filho de uma cabeleireira e, supostamente, de um piloto de avião, assume várias identidades falsas na tentativa de se autoafirmar. O Marcelo verdadeiro foi preso ao se passar por filho do dono da empresa aérea Gol e cumpre pena até hoje.

Consta que o longa de Claude e Nathan Miller também é inspirado numa história real. Pouco importa. O interessante é observar como cada um dos dois filmes plasma em narrativa de ficção, em representação estética, o caótico e informe magma emocional que impulsiona seus protagonistas.

Feliz que minha mãe esteja viva é um drama áspero, crispado, com uma narrativa elíptica e descontínua, em que cada cena parece começar já com a ação em curso e terminar antes de seu desfecho. Do mesmo modo, a composição de cada plano parece sempre truncada, mutilada, ou parcialmente obstruída. Em especial nos flashbacks que remontam à infância de Thomas, vemos fragmentos do corpo de sua mãe, gestos interrompidos na metade, fiapos de diálogos. Signos de ausência, de incerteza. Se a elipse é o princípio que organiza a narrativa, a metonímia é a figura que define seus enquadramentos.

Em Vips, roteirizado por Braulio Mantovani, há também o recurso sagaz à elipse e aos flashbacks, mas a figura do protagonista parece sempre soberana na tela. É em torno dela que se organiza o espaço e se movem os outros personagens (mesmo os que o dominam, como o patrão argentino ou paraguaio). É como se, a exemplo das pessoas à volta de Marcelo, a encenação se submetesse também ao carisma e ao magnetismo do personagem. O filme espelha assim, conscientemente ou não, a cultura da superfície, da aparência, que caracteriza a nossa sociedade do espetáculo e da celebridade.

O opaco e o resplandecente

Em contraste com o resplandecente e loquaz Marcelo, que se desdobra em tantas personae, o calado Thomas se mostra opaco, introspectivo, insondável. Se o outro é muitos, ele é nenhum, é um ninguém que passaria despercebido se não fosse sua capacidade de desencadear a violência e o mal-estar.

Mal-estar, aliás, talvez seja a palavra adequada para definir a sensação produzida pelo filme dos Miller. Perto dele, Vips é uma obra ligeira de entretenimento, ainda que toque de leve em questões dolorosas. Sem querer estabelecer uma hierarquia ou um juízo de valor, é como se o francês fosse um filme dirigido ao público adulto e o brasileiro à plateia juvenil em que parece que todos nos transformamos nas últimas décadas.

Uma última observação: nenhum dos dois filmes seria o que é se não contasse com um ator extraordinário como protagonista. O exuberante Wagner Moura e o taciturno Vincent Rottiers são rostos que enchem a tela de vida e justificam uma ida ao cinema.

De brinde, aqui vai o trailer do filme de Claude e Nathan Miller. Bom proveito.

43 Respostas to “O afeto que se encerra”

  1. anita Says:

    como sempre, seu texto é um convite ao filme e à reflexão … parabéns!

  2. zegeraldocouto Says:

    obrigado, anita. sua leitura generosa é sempre um grande alento. beijo, volte sempre.

  3. Maria José Silveira Says:

    Vou lá ver os dois!

  4. Avital GC Says:

    Oi!
    Assisti o VIP’s com a Noa, e achamos que se não fosse uma hístoria real, não seria um filme interessante.
    Gostei muito desse artigo seu.

  5. annarrê Says:

    Geraldo, sua critica realmente vai fazer mtos irem ao cinema. Continue, parabens pelo blog, abç.

  6. reginapaz Says:

    Zé, fui com Luiz, na quarta-feira passada assistir ao Feliz que minha mãe esteja viva. Não conhecia absolutamente nada sobre o filme. Entrei na sala às cegas. Saí de lá balançada. Não exatamente por ser mãe, aliás, também por sê-lo, mas pelas surpresas que os diretores me causaram o tempo todo. O protagonista parece estar em rota de colisão o tempo todo. E tudo é perfeitamente justificável. Ouvi bem baixinho na sala, “ele é mentiroso, mente o tempo todo”. Também pudera, sua vida re-começa, aos cinco anos, com uma mentira. Imagine adotar uma criança e fazê-la mudar de identidade. Ok, sua identidade já estava esgarçada desde o início. Sua mãe era confusa, uma jovem sem muitas informações sobre maternidade e que justifica o abandono de seu pai, ao narrar ao filho mais velho, o motivo pelo qual ele se fora. Confesso que a trama me deixou em suspense. Quando achei que o conflito entre mãe e filho estava em andamento, vem o assassinato, ou a tentativa. Os diretores realmente conseguiram fazer um drama áspero, como você disse. Aliás, em relações de abandono, em que a mãe promove uma ruptura, seja qual for o motivo (e não cabe aqui fazer julgamento moral algum), esgarça-se o sujeito. Tentar juntar os fiapos é tarefa árdua, talvez impossível. Ainda não fui ver VIPs e não estava em minha lista, não sei por qual motivo, mas você me inspirou.
    Beijos e obrigada pelo seu regalo, sempre deliciosa e necessária reflexão.

    Mari-Jô Zilveti
    http://nomadismocelular.com.br

    • zegeraldocouto Says:

      mari-jô, muito interessantes e pertinentes os seus comentários sobre o filme. bateu com o que pensei e senti. o vips, como eu disse, não tem a mesma densidade e o mesmo impacto, mas vale ver. beijo, obrigado pela visita e pelo carinho.

  7. wilson Says:

    Um blog excelente, parabéns !

  8. Jose Says:

    Zé,seu texto tocou em mim profundamente.Se eu pudesse citar o livro mais importante na minha vida seria a semi-autobiografia do Paulo Francis O Afeto que se encerra.Não por ele ter escrito quando ainda tinha o coração na Esquerda,mas porque é um livro humano,demasiado humano.Um possível resumo seria:De Irene,minha mãe,a Sonia ,minha mulher.Um afetuoso abraço e até a proxima grande emoção.

    • zegeraldocouto Says:

      que bom, zé. lembrei do título do livro de memórias do paulo francis, claro, que também cita o verso do hino à bandeira. um belo livro, sem dúvida. abração, obrigado pela visita e pelo comentário.

  9. Adriana Cardoso Says:

    Como sempre seu texto é uma aula, pra mim. Interessante os dois filmes falarem da relação mãe e filho. Quero muito ver e dessa vez o brasileiro, principalmente. Obrigada Zé pelo trabalho lindo q vc faz. Grande beijo .

  10. flavia Says:

    Zé, não vi os filmes. Mas nem é preciso vê-los, para confirmar neste texto o teu talento tanto na escrita como na crítica de cinema.
    O ponto irresistivelmente complicado, que me chamou atençao lá no FB, está no teu argumento inicial articulador dos filmes, enunciado na primeira frase do texto, e que buscas legitimar em Freud e numa afirmação de auto-evidência. Sobre isso (contestando essa premissa), não sei se conheces, há um livro já clássico da filósofa (feminista, sorry!) Elisabeth Badinter, Um amor conquistado: o mito do amor materno.
    Querendo, te empresto…
    bj

    • zegeraldocouto Says:

      flavia, que bom te ver por aqui. alguns reparos, porém: não busquei “legitimar em freud” e não falei em “amor materno”. o que eu disse (que a relação mãe-filho é a mais primordial, fundadora) me pareceu uma coisa tão óbvia, do ponto de vista biológico e/ou afetivo, que senti necessidade de dizer isso, ou seja, de dizer que nem é preciso ler freud (e muito menos toda a literatura psicanálitica que veio depois) para reconhecê-la. não falei em amor materno, não falei em mito algum. falei de uma relação básica, binária, como a do ovo com a galinha. afeto, como você sabe, não é sinônimo de amor. é algo muito mais amplo e complexo e abarca até mesmo o ódio e o estranhamento. obrigado pela visita e pelo generoso comentário. beijo, volte sempre.

  11. Vítor Says:

    Adoro seu blog, suas análises são muito bem escritas, já te acompanhava na Folha, leio também o calçada da memária na Carta Capital, continuarei te acompanhando aqui, com mais espaço ficou melhor ainda!!!

  12. Paulo KLEIN Says:

    Muito pertinente seus comentários. Assisti o ‘VIPs”, do Toniko Melo e me surpreendeu, pois fui por mero entretenimento com uma amiga, mas o misto de história real, com um roteiro bem desenvolvido pelo Mantovani, foto certeira e interpretações excepcionais, fez juz ao preço dos ingressos e à sessão ‘pipoca’ q enfrentei no FreiCaneca. Qto ao filme do Claude e Nathan Miller, vou ver rapidamente. Seu artigo reforçou a vontade de ver. Grato pelas oportunas dicas e parabéns pelo blog, q está se tornando ‘indispensável’ para ñ se errar nas escolhas. Abs

  13. flavia Says:

    zé, o óbvio também se chama senso comum. Nao precisamos ler freud sobre isso, porque, sobre isso, ele já é senso comum. Estou te dizendo é que, para sair do óbvio, do aparentemente auto-evidente e do senso comum, há outras coisas para ler. Para confirmar o óbvio não precisamos ler nada. É para avançar e “pensar o impensável”, que precisamos ler. Se quisermos, claro! Como vc é um leitor voraz, como vc é tão generoso tanto na crítica (e para mim a crítica é, em certo sentido, mais generosa que o elogio) como no empréstimo de livros, te ofereci este que está há mais de 20 anos na minha estante. Porque te respeito intelectualmente e acho que és um crítico que tem o diferencial de uma formação em história, sugeri sair do argumento baseado no “óbvio” e avançar no filosófico, historiográfico, investigativo e político. Embora disléxica, sou uma leitora bastante proficiente, e vc mais ainda. Entendi o que vc escreveu, apenas discordei do argumento inicial. Quem fala em amor materno e mito não é vc, mas o título do livro que te sugeri e que relativisa, em sua discussão sobre o amor materno como mito, o argumento da obviedade do caráter primevo e fundador da relação mãe filho. Há obras na antropologia, dados etnográficos, estudos sobre outras culturas, que o refutariam de forma igualmente eloquente. Te sugeri apenas um livro famoso, um best seller nessa discussão (o que não quer dizer que também não tenha críticas para ele).
    O que não é inteligente nem generoso, é tornar central na discussão de um texto aquilo que lhe é apenas apenas periférico – que é o caso aqui! Reafirmo o brilhantismo do teu texto.

  14. flavia Says:

    zé cliquei algo aqui e o comentário foi sem querer, sem cortes e edição da minha prolixidade, sem revisão (o que é complicado para uma diléxica que escreve compulsivamente) e sem adeus.
    Então um bj e, para terminar com outra música, Prazer em estar contigo.

  15. Deborah dornellas Says:

    José (ainda não te posso chamar de Zé, porque não nos conhecemos. Sequer trocamos comentários no facebook), seu texto é uma maravilha!!
    Assisti a Vips esses dias e saí do cinema pensando em algumas coisas que você fala aqui. É uma bela história contada sem muita profundidade. Parece que houve mesmo uma escolha por essa levada juvenil para o tom do filme. Proposital, talvez. Na intenção até de provocar riso, em vez de desconforto. Mesmo assim, eu fiquei desconfortável com aquele menino, que idealiza um pai e se esconde em muitas identidades, todas elas de pessoas bem-sucedidas, com liderança. Tem
    aí um querer ser subjacente, né? A relação com a mãe aparece de leve na trama, me parece. Ela olhava e não via o filho realmente (acho que isso é bem próprio das mães, pelo menos de algumas). Esse não enxergar foi determinante pra trajetória do menino.
    Deixando os psicologismos de lado, o roteiro tem boas sacadas e o Wagner segura o filme do começo ao fim.
    Quanto ao filme francês, vou ver logo!
    Beijo

    • zegeraldocouto Says:

      puxa, deborah, obrigado pela leitura generosa do meu texto e do pertinente comentário sobre o filme. mas repare numa coisa: você diz que a mãe aparece de leve na trama, mas ela é decisiva. não por acaso, a última imagem é dela, desdobrando aquela foto em que aparece mascarada. vemos então que ela está entre dois homens, como a cena que o filho presenciara no carnaval de recife e o perturbara. a ilação é clara: ele se atormentava com a promiscuidade da mãe, a incerteza quanto a sua paternidade. beijo, volte sempre.

  16. mara Says:

    Gostei do comentário, assisti apenas o “Feliz que minha….” e não estava muito animada para ver o Vips (mesmo tendo Vagner Moura, historia real, nacional) mas, com o artigo me animei. Abraço.

    • zegeraldocouto Says:

      valeu, mara. só não espere a mesma densidade do filme francês. é uma pegada bem mais ligeira e superficial. mas depois conta pra gente o que achou. abraço, obrigado pela visita e pelo comentário.

  17. maria Says:

    Para mim, o caráter sessão da tarde de Vips traz novamente, entre outras questões, a discussão sobre a “qualidade” dos filmes nacionais. Lembra daquele post sobre o cinema argentino? Quero verificar em Vips se na relação conflituosa – a mãe é mais gentil na pátria amada Brasil, pois sendo “uma obra ligeira de entretenimento, ainda que toque de leve em questões dolorosas”, o filme parece revelar simultaneamente nosso cinema e o próprio país. Vou tentar vê-los esta semana.
    Uma pergunta: você já leu Goodbye to Berlin, do Christopher Isherwood?
    PS: 1×0 -Kleber. bjs.

    • zegeraldocouto Says:

      pois é, maria. o tema reaparece a todo momento. depois me diz o que achou do filme. e não li o livro do isherwood, infelizmente. é um autor de que gosto muito, e o título é muito atraente. e não falemos de futebol, por favor. beijão, volte sempre.

  18. Bruno Mello Castanho Says:

    Zé,

    Primorosa a sua comparação. Não vi o “VIPs” ainda, mas compartilho das suas impressões sobre o filme francês. Escrevi um pouco sobre o que senti com o filme no texto “Feliz que o cinema francês esteja vivo”, que publiquei no meu blog. Deixo o link, abaixo, caso se interesse:
    http://cinefusao.blogspot.com/2011/03/frame-feliz-que-o-cinema-frances-esteja.html

    um grande abraço

  19. rachel nunes Says:

    Gostei de VIPs e até comentei sobre ele no meu blog, em abordagem muito diferente da sua, que é muito boa. O outro filme, infelizmente, não vi. Meu marido resolveu ir a um estádio ver futebol, e eu tive que ir junto. O time dele perdeu; depois fomos ao teatro e não gostamos do espetáculo (isso eu publiquei no blog hoje), por fim ao nosso wine bar favorito, onde não havia mesa disponível, o que nos levou a outro, mas a chuva nos deixou esperando 30 minutos antes do atendimento. Um dia em que quase nada deu certo. Felizmente quase.

  20. rachel nunes Says:

    Ih, Zé, obrigado mas… depois que eu li sobre o meu texto estar bem escrito, dei uma revisada porque, sabe, ele foi escrito pouco antes de ser publicado, sem muita revisão, logo descobri mais uns errinhos nele hoje, o que foi até bom, ou seja, seu elogio terminou por servir de alerta, o que também por isso foi bem legal Abraços!

  21. Elson Says:

    Parecem filmes realmente interessantes especialmente o francês, mas por falar em filme francês, assisti um esses dias, que é realmente brilhante chama-se Lemming – instinto animal, o filme em diversos momentos lembra muito hitchcock com um pouco da estranheza dos filmes do Lynch. E as duas Charlottes a Gainsbourg e a Rampling brilham muito. Fica a dica.
    abs

    • zegeraldocouto Says:

      obrigado pela dica, elson. não conheço o filme, mas sua descrição me deixou curioso. hitchcock, lynch e as charlottes são nomes que fazem meus olhos brilharem. abração, volte sempre.

  22. milu Says:

    bela crítica, zé. vc não funda nada, mas também naõ afunda, certo? agora falando sério, não acho nada óbvio nos teus argumentos. parabéns pelo texto. em tempo: fiquei com vontade de ler o “beste seller” sugerido pela flavia. quem sabe fico mais inteligente?

  23. Douglas Campigotto Says:

    Existe algo mais complexo, cruel e completo que a relação Mãe e Filho?

Deixe um comentário