Kiarostami entre nós

Revistas de entretenimento, nos Estados Unidos e na Europa, descreveram o novo filme de Abbas Kiarostami como “uma comédia agridoce ambientada na romântica Itália”, ou algo parecido.

Não deixa de ser verdade, mas é mais ou menos como dizer que Cantando na chuva é um musical sobre uma atriz de voz esganiçada, ou que Deus e o diabo na terra do sol é um drama sobre um sertanejo que matou o patrão. Perde-se assim a substância da coisa, perde-se aquilo que ela tem de mais potente e original.

Não resta dúvida de que Cópia fiel é mais imediatamente acessível, menos árido, do que os filmes iranianos de Kiarostami. Mas nem por isso é menos complexo, menos sutil, poético ou pessoal.

Representação, imitação, cópia

Se há um “tema” no filme – prefiro falar em motivo, como numa composição musical -, ele é enunciado logo no início, aliás logo no título: é a questão da representação, da imitação, da cópia.

O ponto de partida dramático é muito simples: um historiador e crítico de arte inglês, James Miller (William Shimell), dá uma palestra em Arezzo, na Itália, para lançar seu livro, um estudo sobre autenticidade e falsificação nas artes visuais. Na plateia, Elle (Juliette Binoche), dona de uma loja de antiguidades, mostra um interesse especial pelo conferencista. Os dois se encontram no dia seguinte e ela o leva de carro até a aldeia de Lucignano.

As coisas alcançam um novo patamar de complexidade e significação quando, num café, a mulher do balcão os toma por um casal. Eles não a desmentem, e passam a se comportar como se fossem realmente casados, com um passado comum, um filho etc. Os diálogos e atitudes entre os dois são conduzidos com sutileza suficiente para que fiquemos em dúvida se eles estão representando agora ou se representavam antes, simulando serem recém-conhecidos quando já eram marido e mulher.

Saber o verdadeiro estado civil deles pouco importa. É como saber se Capitu traiu ou não Bentinho.

O importante, ou antes, o estimulante, é perceber como, em seu próprio comportamento, em sua trajetória dramática, os protagonistas desdobram o motivo da cópia, da imitação, da mimese.

Síntese expressiva, economia de meios

Esse motivo, essa ideia-matriz, está presente em cada aspecto do filme e em sua própria estrutura. Mestre da síntese expressiva e da economia de meios, e ao mesmo tempo da ambiguidade, Kiarostami concentra num único plano memorável os sentidos potenciais de seu filme.

Estou falando da cena em que jovens recém-casados (pois Lucignano é um local tradicional de casamentos) entram no salão de um antigo castelo ou igreja para as fotos rituais. Elle entra no salão com um casal que ela acabou de conhecer. Miller, enfastiado, fica sentado num banco na antessala, resistindo aos convites do casal para posar com eles e com a própria “esposa” para a foto. A seu lado, um cartaz atrás de um vidro reflete as pessoas que estão do lado de fora, esperando os noivos saírem ou esperando para entrar.

Desse modo, a tela se divide em três cenas simultâneas. No centro, Miller sentado, impaciente. À direita, pela porta aberta, vemos o casalzinho se preparando para as fotos. À esquerda, no reflexo do cartaz, entrevemos casais mais velhos (pais dos noivos, supõe-se) e outros noivos esperando sua vez de entrar.

Ritual, repetição, reflexo

Há todo um mundo de ideias e sentimentos pulsando nesse enquadramento aparentemente simples, em que a câmera se mantém fixa por longos minutos. O ritual do casamento, que, como todo ritual, é uma repetição (uma imitação) de um gesto primordial fecundo, se refrata, por um lado, em suas consequências, em sua posteridade  (os casais mais velhos entrevistos no vidro do cartaz) e, por outro, em sua promessa, em sua potência (o devir dos novos casais). No meio, Miller hesita em assumir o papel de marido, em entrar no jogo, na representação. Quando cede, a câmera segue fixa, e no lugar deixado vago por ele senta-se uma jovem noiva com o rosto entre triste e assustado. Talvez um toque sutil de ironia de Kiarostami.

O fato é que, não apenas nesta cena, mas em todo o filme, Kiarostami faz uso da profundidade de campo (como sempre fez magistralmente em seus filmes no Irã) e dos espelhos e reflexos para multiplicar as camadas do quadro e propiciar ao espectador uma liberdade do olhar que é, ao mesmo tempo, um estímulo ao pensamento e à imaginação.

E o que é um reflexo senão uma cópia do real – mais ou menos fiel, de acordo com a iluminação e com a natureza da superfície refletora?

Por qualquer lado que o observemos, Cópia fiel é uma obra de admirável unidade e coerência. Um prodígio ainda maior quando lembramos que se trata de um filme realizado na Itália por um cineasta iraniano e protagonizado por uma atriz francesa e um ator inglês. Pensando bem, talvez esse desenraizamento (reforçado pelo fato de Lucignano ser uma aldeia turística, praticamente cenográfica) tenha ensejado a Kiarostami a liberdade de tratar sem amarras nacionais ou locais de um tema tão universal, quase abstrato, como o da representação.

E como dizia Jean Renoir, toda verdadeira obra de arte aspira à abstração. Comédia agridoce uma ova.

25 Respostas to “Kiarostami entre nós”

  1. anita Says:

    Comédia agridoce uma ova mesmo, como diz um personagem do filme: “não há nada de simples em ser simples” . Adorei seu texto, parabéns!

  2. zegeraldocouto Says:

    obrigado, anita. você lembrou muito bem uma fala crucial do filme. beijão, volte sempre.

  3. Jose Says:

    Zé,você e a anita escreveram tudo o que eu tinha para comentar.Só me resta repetir pela centésima vez a frase do Tostão:”Talento é tornar simples o que é complexo.

  4. zegeraldocouto Says:

    zé, meu caro, muito obrigado pela generosa leitura, e por lembrar uma frase preciosa do meu amigo e mestre tostão. grande abraço.

  5. AndreGustavo Says:

    Zé, um prazer ler seu texto, esclarecedor – até porque tenho minhas dificuldades com Kiarostami, creio que por vezes preciso refletir mais sobre suas intenções. Aqui achei um ótimo prelúdio (e tomo de empréstimo a frase do Tostão que o José lembrou acima) abraços!
    PS: o futebol com frequencia esclarece mesmo. Jorge Coli disse algo semelhante sobre Zidane – uma elegância que vem da economia de gestos.

    • zegeraldocouto Says:

      salve, andré. puxa, é certeira a frase do jorge coli. desconfio que você vai gostar desse kiarostami, bem diferente dos outros e no entanto coerente com eles. grande abraço, obrigado pela visita e pelo comentário.

  6. Adriana Cardoso Says:

    José Couto ,Zé ,q filme !!! Juliette Binoche ,em uma cidadezinha na Itália ,historiador e crítico de arte ? Tudo isso junto ! Q casamento ! Hahahahaha .Como sempre ,uma aula ,vc descreve ,tece sua crítica ,com tanta clareza q eu me vi ali na salinha (espero q entre os q estão à direita … )
    Obrigada sempre .Grande abraço .Doida de vontade de ver o filme .

  7. zegeraldocouto Says:

    que bom, adriana. espero que chegue logo por aí. obrigado pelas palavras generosas. beijo, volte sempre.

  8. VAGALUZES FILMES Says:

    oi zé! tu tão fiel quanto a ‘cópia fiel’ desta representação.
    o simples é o mais difícil de se alcançar…
    bjis querido

  9. Emerson Says:

    Zé,

    Fiquei curioso para ver o filme, pesquisei no jornal local, mas sinceramente, não encontrei nada ou estou cego. Enfim, estou enganado ou esse Kiarostami ainda não chegou na ilha.

    abraço,
    Emerson

  10. Ricardo Says:

    Vi “A Cópia Fiel” numa sessão tumultuada no Unibanco. Nunca tinha presenciado coisa parecida, com o filme sendo interrompido várias vezes,com muita gente saindo no meio da sessão…apesar disso, valeu muito “aguentar” até o final, porque o filme é excelente. E a sua critica , Zé Geraldo, esta no mesmo nivel do filme. Conseguiu traduzir em palavras certeiras o que sentimos diante da tela. Nota 10 .

  11. maria Says:

    Oi Zé.Não sei se estou equivocada, mas pensei também no Cópia Fiel como uma homenagem ao cinema.E achei interessante você usar a palavra “motivo”,pois o Kiarostami arriscou colocar como protagonista um cantor lírico.Para um debutante na arte de representar até que William Shimell não se sai mal.E cá entre nós,talvez somente em três línguas e no universo da representação a famosa DR(Discutir a Relação) seja possível. Brincadeira.Cópia Fiel e Além da Vida, do Eastwood possuem, cada um a sua maneira, camadas complexas que se revelam por detrás da aparente simplicidade.
    Diretores afiadíssimos, não é? bj.

    • zegeraldocouto Says:

      ótimas sacadas, maria. homenagem ao cinema, sem dúvida. um filme repleto de camadas que vamos descobrindo aos poucos. exato. obrigado por enriquecer a leitura do filme. beijo grande.

  12. Jung-me not or Jung me do Says:

    Ouvia ontem o relato de uma amiga sobre sua relação virtual com um colega de trabalho. Os dois, há alguns meses, debruçam-se sobre o computador – cada um em sua casa – e desfrutam de palavras e gemidos numa sex-net-chanchada contamporânea. Ela deixa a porta aberta e escolhe a lingerie, noite após noite num hoje ele vem. A ele, aparentemente, basta sabê-la quente e nua. Sandice ou sadismo, pouco importa. A projeção é real; as carnes tremem e segue a vida. Copie conforme é um dos filmes mais delicados que assisti nos últimos tempos. Não me recordo agora (a memória afetiva se bagunça, sempre) de ter visto antes um recorte tão verdadeiro e respeitoso da alma e coração do homem. Afinal, contruímos, todos, o tempo todo, o que chamamos de realidade. E tudo bem. As compreensões, os significados, o que se elabora enfim, será sempre o orginal, conforme.
    Esse blog seu tá bem bonito. Um abraço,

  13. James Cesar M A Souto Says:

    Muito curioso este registro de Abbas Kiarostami na Europa, que evoca ao mesmo tempo os filmes-jogos de Alain Resnais protagonizados por Sabine Azèma – só que tendo na figura de Juliette Binoche uma atriz bem mais portensosa e linda -, e as verborragias melódicas do melhor Eric Rohmer. O duo central está primoroso. E é impressionante quantos títulos nacionais tem esse filme: se hoje é CÓPIA FIEL, antes eu via na web como CÓPIA AUTENTICADA, CÓPIA CERTIFICADA… Não existe originalidade e ser simples é complicado mesmo, né?

    • zegeraldocouto Says:

      caro james, muito pertinentes as aproximações que você faz com resnais e rohmer, ainda que kiarostami tenha um estilo bem particular. quanto aos títulos, me parece que “cópia fiel” acabou vingando por ser o melhor mesmo. abração, obrigado pela visita.

  14. heitor Says:

    “uma comédia agridoce ambientada na romântica Itália” é muito mais que um comentário equivocado: é uma frase criminosa com o filme! parece classificação de prato da culinária chinesa. ah, sublime a ironia “um drama sobre o sertanejo que matou o patrão”!

    • zegeraldocouto Says:

      pois é, heitor. às vezes, por imaginar um público leitor nivelado por baixo, o jornalismo cultural também se rebaixa, banalizando tudo. obrigado pela visita e pelo comentário. grande abraço, volte sempre.

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