Passagem para a Índia

“O que importa é a viagem (ou o caminho), não o ponto de chegada.” A frase, de sabor zen-budista, já virou lugar-comum, mas nem por isso perdeu sua validade e sua potência.

Transposta para o campo da produção artística, a ideia ficaria mais ou menos assim: “O que importa não é o produto final, a ‘obra’, mas o processo”. Essa postura, aliás, serviu de diretriz para boa parte da arte ocidental moderna.

Pois bem: o que isso tudo tem a ver com Bollywood dream, de Beatriz Seigner, que entra em cartaz hoje em onze cidades brasileiras? Eu diria que tudo. O filme me parece uma esplêndida afirmação dessa ideia em sua dupla face, isto é, como plataforma existencial e artística.

O argumento é simples e original: três jovens brasileiras (Paula Braun, Nataly Cabañas e Lorena Lobato) decidem ir à Índia para tentar a sorte como atrizes na pujante indústria cinematográfica daquele país. Chegam lá com a cara, a coragem e um parco punhado de dólares. E se perdem entre produtores picaretas, grupos mambembes de dança, dificuldades linguísticas, barreiras culturais, descompassos religiosos.

O filme “se perde” com elas, nos melhores sentidos do verbo, registrados pelo Houaiss: “livrar-se de, desfazer-se de” e “tornar-se absorto, ser tomado por devaneios”. Mais ou menos o sentido dado por Fernando Pessoa no lindo verso: “Viajar! Perder países!” As três moças perdem (ganham) a Índia.

A narrativa de Bollywood dream está sempre à deriva, sua estabilidade é sempre provisória. A própria identidade de cada uma das protagonistas – construída em diálogos esgarçados e  flashbacks um tanto desajeitados – parece oscilar a todo instante, como se a qualquer momento as atrizes (Paula, Nataly, Lorena) fossem falar em nome próprio, assumindo o caráter de “faz de conta” da encenação.

Cabelos ao vento

É interessante saber que, nessa co-produção Brasil-Índia de baixíssimo orçamento (US$ 40 mil), os parceiros indianos queriam formatar o filme de acordo com os padrões do cinema de massa daquele país, com uma fotografia “bem composta” e ventiladores soprando os cabelos das atrizes. A jovem diretora rechaçou essa injunção e resolveu empunhar ela mesma a câmera, o que reforçou o aspecto artesanal, quase de filme doméstico, de Bollywood dream.

Curiosamente, alguns dos mais belos momentos são os que mostram as protagonistas num trem em movimento, com os cabelos ao vento (de verdade). Ou seja, o “efeito”, a “beleza”, não são o resultado de cuidados artificiais de produção; são produzidos pelo deslocamento no mundo, pela ação concreta – pela vida, enfim.

Numa época em que a produção de filmes, não só no Brasil, cerca-se de cuidados e salvaguardas – da formação de equipes profissionais hierarquizadas à realização de sessões prévias para sondar os desejos do público, da laboriosa captação de financiamentos e patrocínios ao não menos laborioso marketing para o lançamento nos cinemas -, Bollywood dream espanta pelo despojamento e pela coragem – ou antes, pela coragem do despojamento. Traz a marca do imperfeito, do provisório, até mesmo do precário. Tem o frescor revigorante do risco e do erro. Como notou Inácio Araujo, não tem um fim. Como se nos deixasse no meio da viagem e não na estação de chegada. O que remete de novo ao início deste texto.

E aqui vai um trailer do filme, só pra dar vontade de ver no cinema.

10 Respostas to “Passagem para a Índia”

  1. maria Says:

    Zé, legal a sua concepção do filme. Fiquei curiosa para ver essa “coragem do despojamento”. E deve ser muito bonita a cena dos cabelos ao vento no trem. Sugere liberdade e alegria. É o frescor dos “cabelos ao vento, gente jovem reunida” como canta Elis, na música do Belchior, e que seu texto soube transmitir tão bem. E “vejo vir vindo no vento o cheiro da nova estação” serve tanto para o filme quanto para nossas vidas,não é? Um caminho de riscos e lutas, claro, mas também cheio de esperanças e alegrias. Beijo grande, ótimo final de semana.

    • zegeraldocouto Says:

      bacana, maria. veja o filme e depois comente aqui com a gente. ah, vi finalmente o “homens e deuses”. gostei bastante. talvez escreva alguma coisa aqui. beijo grande, volte sempre.

  2. Adriana Cardoso Says:

    Nossa q vontade de ver, no cinema! Tbm, depois de ler essa beleza de texto, q parece puxar a gente pela mão, não seria diferente. O filme deve ser iinteressante demais, pq tudo ali, naquele país é tão contrastante: lindo e feio, muito e pouco, alegria e dor… Como a vida tantas vezes. Adorei a leitura, texto nota mil como sempre. Obrigada pela oportunidade. Beijo grande.

    • zegeraldocouto Says:

      sim, adriana, o filme dá uma ideia bem vívida do caos e da beleza da índia, escapando ao mesmo tempo dos clichês sobre o país. tomara que você veja logo. beijão, obrigado pela visita.

  3. rachel nunes Says:

    Aqui, no Rio de Janeiro, O Globo fez questão de desancar o filme, ressaltar sua estrutura frágil, pontuada por clichês, etc. Você, sabe, Zé, se há, em O Globo, alguma orientação para não falar bem de nenhum filme que não seja do interesse direto da Globo Filmes? Isso acontece sempre e, quando um filme deles é muito, muito ruim, põe o bonequinho olhando. Ok, parece mania de perseguição, com o demônio das Organizações Globo perseguindo toda e qualquer manifestação à parte do “Prozac” (é brincadeira com o nomezinho correto); parece, não, é!

  4. zegeraldocouto Says:

    rachel, não posso responder sua pergunta com segurança, pois os meus amigos que escreviam no globo não estão mais lá. mas acho que não deve haver uma orientação tão explícita, mesmo porque o jornal não pode perder sua credibilidade seguindo uma estratégia tão mesquinha. mas o que existe, acho, é uma submissão geral, não só do globo, mas da grande imprensa em geral, aos valores do mercado, ao gosto médio, a uma fórmula consagrada de cinema de sucesso. o parâmetro oculto (e às vezes escancarado) das análises é ésse. beijo, obrigado pela visita.

  5. maria Says:

    Acho que além do filme, você viu a gente perder, né? Sei que não queres falar de futi, mas vou te desobedecer. Acredito que muitos, como eu, sentem muito a falta de sua coluna. Também sei que não é culpa dela, mas agora até aquela Rita me irrita. E, sim, por favor, escreva algo sobre Homens e Deuses. Sabe, vi o trailer do Natimorto e fiquei com vontade de assistir. Mas estou triste e de luto desde ontem. Se bem que o luto ludopédico dura pouco, talvez até a próxima rodada. bj

  6. Leitura da Semana… Nos Blogs, Sites e etc « Ficção e Não Ficção Says:

    […] 19) José Geraldo Couto, no Blog do Zé Geraldo: Passagem para Índia. […]

  7. John Smith Says:

    Olá, JGC! Belíssimo texto. Ver a atriz Paula Braun, no trailer acima, me fez lembrar do “O Cheiro do Ralo”, de Heitor Dhalia. Adoraria ler um texto escrito por você comparando e/ou contrastando os filmes “Homens e Deuses” e “Em Um Mundo Melhor”, vencedor do Oscar. Abraço. John.

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